Confesso que só agora comecei a ler com mais cuidado o relatório sobre a pobreza recentemente publicado. E não é que esbarrei logo no primeiro quadro?!...
Nele se identificam as chamadas "linhas de pobreza" em 2001 e 2007 sob a forma de custo em USD/pessoa/dia das 2100 calorias consideradas como o limite de pobreza. Textualmente e em inglês:
"The interpretation of the $0.88 per person per day poverty line as an absolute poverty line is straightforward: it represents, in December 2007 prices, the typical cost of attaining 2100 calories per person per day and meeting some basic non-food needs."
O valor correspondente no inquérito de 2001 está na última linha e por ela se pode verificar que aos 0,88 de 2007 correspondiam 0,52 USD/pessoa/dia em 2001. Isto é: o valor de 2007 é 36 cêntimos superior, o que equivale a quase mais 70%. É obra!... Só que...
Pois é: comparações deste tipo devem também ser efectuadas a preços constantes e não a preços correntes, em termos Reais" e não "nominais". Isto é e por exemplo, o valor de 2007 tem de ser "deflacionado" com o índice de preços (no consumidor) para ser estritamente comparável com o de 2001. Na verdade, aquele valor de 0,88 tem uma componente "real", constante, e uma componente "preços", que não é mais que a inflação entretanto verificada entre o início e o fim do período.
O Índice de Preços no Consumidor (IPC) de Timor-Leste tem a sua base em Dezembro de 2001, sendo a média dos preços desse mês tomada como "100". As estatísticas publicadas pela Direcção Nacional de Estatística dizem-nos que o IPC em Dezembro de 2007 (mês a que se referem os 0,88 USD) foi de 136,2 (todos os grupos de tipos de despesas menos a habitação). Isto significa que entre Dezembro de 2001 e Dezembro de 2007 os preços aumentaram 36,2% em Timor Leste, com taxas anuais de inflação muito variadas.
Então o que temos a fazer é "defacionar" aqueles 70% de aumento da linha de pobrza com estes 36,2% de aumento dos preços. Passamos assim a ter uma linha de pobreza de "apenas" mais 33,8% que a anterior, de 2001. Isto é: em termos reais e usando aquela variação de preços os 52 cêntimos de 2001 correspondem a 70 cêntimos de 2007 (mas a preços de 2001) e não a 88.
Naturalmente isto não diminui em (quase) nada a principal conclusão: a de que a pobreza aumentou entre 2001 e 2007.
Mas aí e provocatoriamente faço a mesma pergunta que fiz aos "expertos" (de uma empresa chilena que faz este tipo de trabalhos para o Banco Mundial) que coordenaram tecnicamente o inquérito quando eles o apresentaram ainda em 2006: para quê fazer o inquérito --- ainda por cima nas condições em que o iniciaram em 2006 --- se já se sabia à partida que a pobreza tinha aumentado? Como sabia? Qualquer pessoa a "via" na rua, especialmente se levantasse o rabo da secretária e fosse para as montanhas... Coisa que muitos não fazem...
Moral da história e também provocatoriamente: o que se ganhou com o inquérito foi saber que agora os pobres são quase metade e que antes eram cerca de um terço. And so what? Será que isso faz uma diferença significativa na formulação das políticas? Será que a minha preocupação com a situação da população se vai modificar por agora saber que há 5 pobres em vez de 3?
A mim não afecta nada: tanto me preocupo (muito) com 5 como com 3! Esperemos que outros também...
Algumas notas para terminar:
1 - naturalmente que a dimensão do problema tem consequências mas essas serão mais de ordem quantitativa que qualitativa: terei de dispor de mais recursos para retirar da pobreza 5 do que 3... Mas o essencial é que eu queira e saiba MESMO como faze-lo... Porque recursos financeiros parece que não faltam... O problema são os outros, como a "massa cinzenta".
2 - O problema do economista, aquilo para que é/deve ser treinado, é o de conseguir a melhor gestão possível de recursos que são escassos. Constato que se gastou muito dinheiro neste projecto/inquérito mas que o país continua sem ter Contas Nacionais... Se quisesse ser mauzinho até era capaz de dizer que se as Contas Nacionais dessem tanto dinheiro a ganhar a empresas/técnicos estrangeiros como deu este projecto, elas já estavam a ser feitas regularmente... Aqui para nós que ninguém nos ouve, o que eu teria feito era priorizar as Contas Nacionais e deixar este inquérito para mais tarde... Aliás, veremos o que as pessoas que interessam vão fazer com ele (a não ser o mesmo que o vendedor de peixe nos livros do Astérix faz aos peixes quando desconfiam da qualidade dos bichinhos que vende e que chegaram de Lutécia depois de 2 meses de viagem: atirá-los à cara de outros... Percebem o que quero dizer, não percebem?)
3 - last, not least , o aumento da pobreza não é só e apenas um fenómeno económico. É também um fenómeno demográfico: se os recursos disponíveis crescem mais lentamente que a população então é evidente que a pobreza aumenta. Esta (o rápido crescimento populacional), além de outros de natureza mais económica, é uma das causas do aumento da pobreza. Daí o meu permanente apelo aos meus amigos timorenses: trabalhem mais de dia e "trabalhem" menos de noite... Para bom entendedor... :-)
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