sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"Das boas ideias e das más práticas" ou "Ponham a mesa às lagartas!..."

Tema de forte discussão em Timor Leste tem sido o chamado "pacote do referendo". Ele inclui um total de mais de 750 projectos de vária natureza (construção e reconstrução de escolas, obras de controlo de cheias, arranjo de estradas, etc) e dimensão financeira (dos cerca de 6,5 aos 1900 mil USD, com muitos de cerca de 15 a 20 mil USD para a construção de escolas).

Este projecto é descrito no decreto que o aprova como "permitindo o desenvolvimento do sector privado" timorense através da "implementação de pequenos mas estruturantes projectos para a Nação". A sua implementação decorrerá não através dos organismos públicos competentes --- nomeadamente o Ministério das Infraestruturas, no âmbito do qual recaem a maioria do projectos --- mas através de uma organização privada, a Associação de Empresários da Construção Civil e Obras Públicas que receberá o dinheiro do Governo e o encaminhará, sob a forma de materiais de construção civil ou de dinheiro, para os empresários que executarão as obras, empresários esses que ela própria irá "organizar [...] nos distritos e sub distritos para concretizar tamanho projecto".




"Tendo em conta o poder de compra que este projecto confere à AECCOP, esta fica obrigada a adquirir materiais de construção de forma a assegurar a melhor relação de valor/dinheiro".

Este "pacote" arrisca-se, quanto a mim, a ser o exemplo acabado de uma boa ideia que, se mal implementada --- e aparentemente estão reunidas todas as condições para isso, infelizmente ---, pode dar origem a má(s) prática(s).

A boa ideia é a necessidade de, na fase de desenvolvimento em que se encontra o país, em que o sector privado nacional é diminuto --- eu costumo dizer que ele se resume a 5 ou 6 números de telefone... --- , compete ao Estado assegurar a liderança do processo de desenvolvimento.
Esta foi, no essencial, a estratégia seguida pelos países do "milagre asiático" (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Malásia, etc) e aparentemente "deram-se bem". É, pois, de aplaudir a preocupação manifestada e a iniciativa de incentivar o sector privado.

A propósito disto, lembro-me de uma conversa mantida há vários anos com um dos maiores empresários timorenses em que ele me dizia que "se nascemos como empresários e somos hoje o que somos devemo-lo ao Engº Mário Carrascalão que, enquanto Governador de 'Tim-Tim' nos apoiou dando-nos empreitadas que de outra forma iriam parar apenas às mãos dos indonésios". Parece que ahistória se repete, agora em maior escala.
Mais, é também de aplaudir a ideia de que o incentivo do Estado deve ser dado não só aos médios e grandes empresários --- serão eles, naturalmente, os executantes das obras de maior envergadura técnica e financeira como a reconstrução de estradas --- como também aos pequenos empresários locais, com capacidade para executar obras de construção e reconstrução de escolas e outros edifícios públicos e outras obras de menor exigência técnica e de menor dimensão financeira.



Porém... (porque é que terá de haver sempre um "mas"?!...)


a) chamaram-nos a atenção dois factos interrelacionados: por um lado, o vasto conjunto de projectos que apareceram "do pé para a mão" (já existiam? foram feitos em cima dos joelhos? que qualidade têm?) e, por outro, a verdadeira "bofetada de luva branca" que se dá no Ministério das Infraestruturas ao retirar-lhe a intervenção directa na execução dos projectos e que corresponde a reconhecer a incapacidade do mesmo --- e, aparentemente, do conjunto do aparelho de Estado --- em pôr no terreno estes projectos;

b) relacionado com o anterior e ao contrário do que se faz em relação ao aparelho de Estado, parece reconhecer-se a uma entidade privada, a AECCOP uma (até agora insuspeita) capacidade (de execução) que o Governo não teve. Isto levanta (pelo menos) três problemas importantes: o primeiro é saber se a referida associação tem as capacidades que o Governo parce antever-lhe; segundo, quase constitucional, é o de se não se estará a ir longe de mais na transferência de gestão da coisa pública --- e de muitos, mas muitos mesmo milhões de dólares --- para a esfera privada, com alguma (?) perda de soberania do Estado já que este, pelo menos aparentemente, se demite do processo de selecção (por concurso) dos executantes dos projectos; outro problema é o de saber como é que o Estado vai controlar a qualidade das obras e se não irá "pagar gato por lebre" pois não fica claro quem inspecciona o quê e como resolver os (inevitáveis) conflitos de interesses que acabarão por surgir;



c) tema interessante é também o da forma como se desenvolverão as relações não tanto entre os grandes empresários entre si --- são poucos e encontrarão um processo de conciliação dos seus interesses --- mas mais entre estes e os médios e pequenos empresários. É que, sendo evidente que a AECCOP é a cúpula de defesa dos interesses dos grandes empresários --- é assim em todos os países e não se vê porque será de forma diferente em Timr Leste --- a verdade é que, ao fazer passar o dinheiro E A FUNÇÃO DE ABASTECIMENTO (pelo menos parcial) EM MATERIAL para os pequenos e médios empresários por esta estrutura, ela poderá "apertar" estes últimos através do condicionamento da disponibilidade de bens e do preço a que eles vão ser disponibilizados. Isto é, os grandes empresários, também eles os grandes importadores, vão beneficiar de dois modos (construção directa e importação/abastecimento de materiais);



d) relacionado com quanto fica acima está a questão de saber qual a capacidade que a economia (os produtores) nacional tem para responder de forma ágil ao estímulo agora dado à produção e se a urgência dos projectos não se irá reflectir, nomeadamente, numa subida dos preços dos materiais de construção e outros, acelerando a inflação. De uma forma geral, preocupa-nos o facto de este "pacote", por aparecer "de chofre", ir ter, quase de certeza, efeitos mais limitados do que poderia ter se tivesse sido programado de outra forma --- mais tempo de preparação e de implementação, criando alguma capacidade nacional de produção ANTES dele de modo a poder fornecer-lhe o máximo de inputs;



e) E chegamos ao ponto mais delicado: o da corrupção que pode estar "embrulhada" neste "pacote". Não pretendo fazer processos de intenções mas a verdade é que tudo isto me faz lembrar aquela história para crianças em que Deus dizia "ponham a mesa às lagartas". As folhinas verdes estão lá todas...
Naturalmente fica-me bem dizer aqui que não sou corrupto e não gosto dos corruptos e da corrupção. Mas a verdade é que o economista que há em mim leva-me a perguntar, num quadro de economia política, quais os mecanismos de "acumulação primitiva [privada] de capital", essencial a qualquer processo de crescimento/desenvolvimento, disponíveis num país como Timor Leste, que não conseguiu fazer essa acumulação ao longo da sua História.
As economias hoje mais avançadas fizeram essa acumulação ao longo de séculos e nela teve sempre um papel importante a "exploração", fosse ela dos próprios nacionais fosse de outros povos através dos mecanismos coloniais. Os países das "economias emergentes" fizeram essa acumulação de uma forma menos "brutal" para outros povos mas a sua população foi, na maior parte dos casos, "espremida" de modo a maximizar os lucros --- através, nomeadamente, de políticas de forte controlo (incluindo policial) da sua mão de obra. O próprio Estado foi agente dessa acumulação privada ao canalizar, quase sempre por mecanismos que envolveram alguma "rent seeking" e corrupção, significativos recursos para as mãos de privados.
Porque é que Timor Leste tem de ser diferente? Por mais que nos repugne a corrupção há que reconhecer nela uma certa função económico-social. Que se esgota se os recursos assim mobilizados derem origem a consumo sumptuoso e a "fuga de capitais" em vez de re-investimento na economia nacional.
Só que, apesar de tudo, tem de haver alguma moderação no nível das transferências mais ou menos ilícitas --- ainda que sob a capa da (aparente) legalidade --- e, principalmente, há que asegurar que haja um nível "mínimo" da relação custo/benefício para a comunidade nacional que está a dispender dinheiro que poderia ter usos alternativos. Ora o problema é que parece não terem sido ainda montados os "checks and balances" necessários para assegurar que a comunidade vai ser suficientemente beneficiada. Mas esperamos que seja, claro!

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