domingo, 28 de setembro de 2008

Sobre as funções do dinheiro: em geral e em Timor Leste

Num comentário à minha "teoria" sobre a rigidez dos preços dos bens "nacionais" em Timor Leste e o significado deste facto em termos de comportamento dos agentes económicos timorenses uma amiga minha escreveu-me uma mensagem em que fala a certa altura de algumas das suas experiências pessoais (está há mais de 3 anos no país e tem calcorreado este de lés a lés por necessidades profissionais, incluindo aqueles lugares "onde o diabo perdeu as botas"). Com a sua autorização aqui fica parte da mensagem:

"Sabe que a sua teoria dos preços é "mais ou menos" verdadeira. Os preços dos produtos agrícolas nas áreas rurais têm pouca variabilidade (exceção feita a esse maná dos deuses, o arroz). Por ex, se eu comprar quatro abóboras em Ermera, o preço é 1 dólar, tal como em 2005. O peixe em Behau é 25 centavos, a catupa é 10 centavos, e tal. Na minha lógica de ignorante em economia, o preço é imutável porque o dinheiro não existe: vigora a troca directa, o "bartering". Porém, o seu exemplo - o preço do táxi - varia sim: costumava ser de 50c a 1 dólar, em 2005 (para os timorenses) e agora é de 1 a 1,50 (também para eles). Quanto às coisas serem herança dos tempos da Indonésia, algumas são mesmo: em Manatuto, compra-se peixe em "dólar-rupia": pergunto o preço e respondem-me "tiga ribu rupiah", três mil rupias....E a cotação da rupia em Díli é 10.000-1 dólar (no câmbio paralelo, com gente de Oecussi). Imutável.
Um dos problemas é a falta de capacidade de muitas das pessoas para pensarem em termos de decimais e, pior ainda, em fazerem contas com valores acima de 10. Já me ocorreu uma situação surreal no mercado de Taibesi: a minha compra estava acima de 20 dólares, e a vendedora não sabia contar acima disso. Eu paguei o valor correcto porque fiz a conta por ela. Outra coisa surreal: numa edição de 2007, fizemos um pré-teste com um jogo que mostrava notas e moedas de vários valores. Apenas a nota de 1 dólar era conhecida, e ainda assim com dificuldade (o pré-teste foi feito em regiões remotas de Bobonaro e Covalima, com crianças de 9 a 14 anos). As crianças pequenas conheciam apenas as moedas.
Outra coisa: numa região remota de Ainaro, no início de 2007, fomos comprar feijão de uma senhora que o estava carregando ao longo de uma estrada rural (os meus colegas aproveitam as viagens para encherem a despensa, exactamente porque os preços são muito mais baratos no distritos). A senhora recusou-se a vendê-lo por dinheiro - queria arroz em troca....
[...] Se tudo é por troca, o dinheiro, seja ele qual for, faz diferença apenas para aqueles que vivem nas vilas. Isso é algo que mudaria radicalmente caso se pudesse chegar a essas regiões através de boas estradas. "


Passe algum exagero "caricatural" para sublinhar os aspectos mais importantes bem como a generalização que se possa estar a fazer de um conjunto de acontecimentos do dia a dia, o que fica acima é muito interessante e sugere até uma investigação mais aprofundada sobre o tema.
Na verdade parece que muita coisa se passa como se o dinheiro (a moeda) desempenhasse apenas uma das suas conhecidas funções (veja aqui um texto do falecido Prof. Pereira de Moura sobre o assunto) : a de meio de pagamento ou, melhor, de intermediário nas trocas. "Dá-me 1 USD porque não tens as bananas que quero e com esse dólar vou comprá-las ali adiante...". Isto é característicos de sociedades pré-desenvolvidas, em que o que predomina é a troca directa de produtos entre produtoes de bens diferentes MESMO QUE, como é o caso para boa aprte da população do país (e não necessariamente apenas nas zonas rurais...) INTERMEDIADA PELO USO DA MOEDA.

A procura de dinheiro para "acumulação" de forma a assegurar que se tem amanhã mais do que se tem hoje através, nomeadamente, da sua aplicação em investimento económico, é algo estranho à sociedade timorense em geral. Esta, por estar em muitos casos ao nível da sobrevivência (ou pouco mais), preocupa-se fundamentalmente com esta. Daí a maior importância dada ao investimento social (barlaque, festas pelo casamento, festas pelo baptizado e, pasme-se, até na hora da morte...) relativamente ao investimento económico. Aquele é fundamentalmente de grupo (nomeadamente da família alargada) para aassegurar a redistribuição do que existe enquanto que este tende a ser essencialmente privado ou, quando muito, da família nuclear e procura aumentar o que existe e não apenas a redistribuir o que já está produzido como no investimento social.

Só há aqui um "probleminha": é que DESENVOLVIMENTO É ACUMULAÇÃO, é investimento económico, é "reprodução alargada" e não "reprodução simples" dos recursos...
Como passar do investimento social ao investimento económico? O que, até pelo que se disse, implica uma autêntica "revolução cultural" na sociedade e na forma como ela se organiza e como interagem os seus membros.
Ora, isto vai levar tempo. Nós é que temos a mania de que "Roma e Pavia se fizeram num dia"... Mentira! Já vi as duas e "aquilo" levou tempo a erigir, sim!... Um tempão!...

1 comentário:

José Gomes disse...

Já não aparecia por este cantinho há muito tempo. Gostei da "lição" e da explicação da sua amiga baseada na experiência do dia a dia, em Timor.
Um abraço,
José Gomes