quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Investimento "social"; investimento "económico"; família alargada; família nuclear

Um aspecto que sempre despertou a minha atenção no comportamento da sociedade timorense é o de que, sendo ainda extremamente forte o sentido de "grupo" e de pertença a uma família "alargada" (em contraposição com o conceito de família "nuclear", base da organização dos países ditos "mais avançados"), aquilo que é de um é, normalmente, entendido como sendo de todos.
Assim, os rendimentos de um membro da família, nomeadamente se saírem mais um pouco do "normal", acabam por serem entendidos como sendo, de alguma forma, o rendimento de todos... Um(a) ex-ministro(a) dizia-me que só soube que tinha tantos primos e primas depois de ter recebido os primeiros ordenados... Outro(a) amigo(a) quase se "auto-exilou" para que não tivesse de suportar a pressão de tantos familiares a baterem-lhe à porta...

Esta lógica (re)distributiva está presente, quantas vezes contra a vontade dos mesmos, em muitas situações e o pagamento de barlaque e as festas "de arromba" que se dão em determinados momentos não são mais que um processo criado pela sociedade para assegurar essa (re)distribuição. É uma forma de investimento "social", muito comum em sociedades menos "evoluídas", e que é usual também noutros locais, como em África.

Lembro-me, por exemplo, de um amigo "antropófago" (antropólogo mas ele adorava dizer que era "antropófago"...), especialista na sociedade rural do sul de Moçambique (habitado por xanganas), me explicar como a estratégia de sobrevivência num ambiente natural relativamente hostil (devido, nomeadamente, às secas e à pouca produtividade da terra), tinha condicionado até as estratégias de casamento das famílias levando estas a procurar parceiros(-as) para os seus membros casadoiros em zonas afastadas do local de residência de modo a aumentarem a probabilidade de nesses locais a seca não afectar a disponibilidade de comida que seria, assim, (re)distribuída dentro de uma família (agora ainda mais alargada) espalhada por uma ampla região.

Em Timor as formas de investimento "social" existentes não fugirão muito a esta lógica de assegurar a sobrevivência do maior número possível de membros num ambiente que não é, em muitos casos, o mais fácil. A própria "decisão" de ter muitos filhos poderá ser explicada à sombra desta lógica: os pais assegurarem que quando forem velhos terão descendentes suficientes para cuidarem deles.

O pior é que temo que, mais vezes do que se possa pensar, as pessoas não têm mesmo os recursos suficientes para participarem neste esquema de investimento "social", acabando por ficar endividadas perante outros membros da família e até, eventualmente, perante terceiros. Aliás, esta lógica de criar eternos devedores é, ela própria, uma estratégia de assegurar de que ninguém "salta fora" do esquema de (re)distribuição.

Esta lógica tenderá, com o tempo e com o aumento dos níveis de desenvolvimento, a diminuir significativamente mas até lá...

Não há, que eu saiba, um estudo minimamente aprofundado sobre os processos de formação e de (re)distribuição da poupança em Timor Leste mas seria interessante se se estudasse a situação.
É que a (evidente) fraqueza do investimento "económico" privado no país --- não o de maior escala mas a um nível mais baixo mas também ele essencial --- está, creio, a ser fortemente penalizado por estas práticas de investimento "social" que, por vezes, deixam as pessoas "enterradas até ao pescoço" em dívidas que terão de pagar sob pena de "o céu lhes cair em cima".

Num domínio muito específico e por exemplo, mais cedo ou mais tarde (antes mais cedo que mais tarde...) as pessoas compreenderão que a melhor estratégia para assegurarem a sua sobrevivência no futuro não é ter 7-8 filhos mais ou menos analfabetos mas sim terem 3-4 (e já é muito... :-) ) em quem possam "investir" dando-lhes acesso a mais e melhor educação, que lhes proporcionará, mais tarde, maiores rendimentos que poderão colocar ao serviço da sobrevivência da sua família... nuclear.

Serão bem vindos os comentários sobre estes aspectos...

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Professor,

Da parte economica, "nao pesco" nada. Mas sei um pouco da cultura. Ha aqui a tradicao do "feto sah" (familia do lado das mulheres) e "umane" (familia do lado dos homens). Quando ha um funeral ou um casamento, ou kore metan (desluto)o "feto sah" da porcos e o "umane" da bufalos. Como nos tempos modernos os porcos e bufalos foram reduzidos a USD, as contas fazem-se nesta moeda.
Mas o interessante e que ha hierarquias: os homens do "umane" podem rogar pragas as pessoas do "feto sah", que duram por varias geracoes (convocam os antepassados) se nao pagarem como devem (?) ou se nao derem o dinheiro que eles pedem (e falta, dizem, de respeito...). Portanto, se um desgragado da linhagem feminina nao da o que quer ao da linhagem masculina, estara exposto ao odio dos antepassados. E conheco varios timorenses que vao enchendo os bolsos a custa desta crenca, extraordinariamente enraizada na sociedade (e sobretudo nos escaloes mais altos, onde o pessoal e descendente de liurai).
Mas o sistema, no seu estado "puro" acaba por gerar um ciclo de endividamento perpetuo. Porque os que sao de "umane" tambem tem ramos na familia de "feto sah", ou seja, tambem tem que se por a pau com as ameacas de pragas se nao pagarem o que devem.
Julgo que o sistema, no original, ate funcionaria e seria minimamente equilibrado (embora seja notoriamente patriarcal...). O problema e que hoje em dia muitos timorenses querem desenterrar as tradicoes de modo adaptado para encherem os bolsos a custa da "cultura". Conheco um individuo de 40 anos, que nunca trabalhou nem deixa a mulher trabalhar, e vive a custa do que lhe dao as irmas (ele e "umane" e as irmas "feto sah"), o que nao aparenta ser pouco pelo estilo de vida que tem, para Timor, claro. Mas quando este individuo tem de enfrentar o "umane" dele (ou seja, os irmaos da esposa), "foge com o rabo a seringa" (nao da ou da muito pouco dinheiro para cerimonias de casamento, funeral e desluto) e o pessoal do umane ja se esta a passar. Este individuo e o que eu chamo um "tradicionalista a la carte". E nao e o unico por aqui.
Julgo que serao exemplos destes que levarao as pessoas a pouco e pouco a levarem as tradicoes desta natureza monetaria a ser elevadas ao patamar simbolico, porque comeca a ser extraordinariamente insuportavel para familias ricas e pobre. Com familias tao alargadas e tantos "umane" e "feto sah" e tantos obitos por semana, deve haver familias que se "esmifram" para pagar as cerimonias (e ai que eles vao ver o conteudo dos envelopes, nao ha como fugir!)
Com o tempo (e com mais "idiotas uteis" como individuo que acima descrevi), tudo mudara, mas por agora ainda ha uma especie de cultura hibrida a sobreviver em Timor-Leste.

Anónimo disse...

Parece-se um bocado com o sistema dos "Pimps".

Anónimo disse...

Enganei-me: nao e "feto sah" mas "feto san" (o som e identico).
Mais uma achega: para que alguns arranjem uns "subsidios paralelos", agora ate inventam festas de seis meses de morte de um familiar (coisa inaudita). Sempre da para fazer umas festarolas - que a oferta cultural e escassa - e arrecadar algum.
Tenho a teoria que a inexistencia de um Estado Social (se e que este "bicho" ainda existe seja em que parte for do mundo) em Timor-Leste sera tambem a razao da adaptacao e reciclagem de preceitos tradicionais. O Estado timorense, apesar de conceder varios subsidios, como ainda nao consegue garantir condicoes minimas de subsistencia (de modo directo mas sobretudo de modo indirecto) nem qualidade de vida as populacoes, de maneira que os patriarcalismos, os animismos, a "patronage" (tambem aprendida com os indonesios, assinalando-se que algumas culturas da Indonesia tem sistemas semlhantes ao de TL -chamado de "adat") sobrevivem e continuarao a sobreviver. So idiotas uteis e pessoas de facto "a rasca" e que poderao preverter o sistema. Ja ha alguns timorenses que comecam a seleccionar o que pagam e a quem pagam (a que festas de casamento e desluto se dignam comparecer e dar algum dinheiro) de acordo com o que tem ou de acordo com o equilibrio (ir as festas de quem no passado tambem ajudou, esquecendo aqueles que so lembram de receber mas nunca se lembram de dar). As relacoes familiares alargadas podem "esfriar" com estas medidas, mas como uma vez ouvi de um timorense: "o pessoal agora tem que trabalhar, so tem o fim de semana livre para visitar e ser visitado e quer descansar; nao e como noutros tempos em que o pessoal nao fazia nenhum e andava sempre a visitar a familia; se ja nao tiver tantos contactos, paciencia, a vida esta a mudar."
Tambem ha ja alguns timorenses que nao vao acreditando nas capacidades misticas de rogar pragas, seja por se estarem a tornar em verdadeiros catolicos (abandonando gradualmente o sincretismo religioso que por aqui abunda) ou por pura e simplesmente questionarem racionalmente algumas crencas (nao necessariamente toda a tradicao, de que normalmente se orgulham e odeiam ouvir criticas).
Outro pormenor: nao vejo ninguem preocupar-se com a velhice. Ate ao momento apenas conheci duas "ferik" que se preocupassem de facto com uma reforma ou em amealhar para o futuro e para o bem estar dos filhos. Praticamente toda a gente vive para o imediato, o consumo imediato, o prazer imediato, aproveitar ao maximo agora que amanha pode nao haver. Por isso se constroem casas com pessimas condicoes mas que tem um Prado ou um Pajero estacionado ao lado e os donos possuem roupas de marca e telemoveis topo de gama. Para mim o mais ridiculo sao casas inacabadas mas com um prato de satelite ao lado. Nao seria preferivel gastar os 250 USD do satelite e os 40 USD por mes do servico a comprar uns sacos de cimento para pelo menos disfarcar os tijolos?
Esta mentalidade julgo vir da cultura da violencia e do medo alimentada durante anos pela constante iminencia do perigo. (Dizem-me que nao poem telhas e poem zinco nos telhados porque assim nao se partem com as pedradas; e para que ter uma casa muito boa se amanha e queimada novamente?)Talvez esta mentalidade de altere com a estabilidade do pais (espero) e ate com alguma influencia estrangeira (benefica). Antigamente nao se viam timorenses nas praias a apanhar sol e a fazer jogging e hoje em dia e o prato do dia (embora ainda tenha de se tirar o mito da cabeca de que bikinis sao indecentes e que a pele escura e feia).

Anónimo disse...

Muito obrigado pelos dois longos (e esclarecedores) comentários acima. AS

Anónimo disse...

nao posso dizer isto e mal habito,mais e uma tradicao que precisa mais tempo para reduzi-la. Factores importante que precisavam e socializar uma comparacao entre o custo e beneficio em investir no investimento social e investimento em educacao por ejemplo

Anónimo disse...

«Quando ha um funeral ou um casamento, ou kore metan (desluto)o "feto sah" da porcos e o "umane" da bufalos.»

Gostei do seu comentário. Traduz bem a realidade da trocas de bens numa família alargada.

Mas, apenas correcção relativamente aos bens: os 'feto sa' dão aos 'umane', nos casamentos, funerais, deslutos ou arranjo das campas de familiares, búfalos, cabritos, cavalos, galos; e os 'umane' em troca retribeum com porcos, arroz. Isto no respeita aos animais domésticos envolvidos.